(…) “Beira, quer já de si dizer beira da serra. Mas não contente com essa marca etimológica que lhe submete os domínios, do seu trono de majestade a esfinge de pedra exige a atenção inteira.
Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão. Mas junta-se à perturbante realidade uma certeza ainda mais viva: a de todas as verdades locais emanarem dela. Há rios na Beira? Descem da Estrela. Há queijo na Beira ? Faz-se na Estrela. Há roupa na Beira? Tece-se na Estrela. Há vento na Beira? Sopra-o a Estrela. Há energia eléctrica na Beira? Gera-se na Estrela. Tudo se cria nela, tudo mergulha as raízes no seu largo e materno seio. Ela comanda, bafeja, castiga e redime. Gelada e carrancuda, cresta o que nasce sem a sua bênção; quente e desanuviada, a vida à sua volta abrolha e floresce. O Marão separa dois mundos — o minhoto e o transmontano. O Caldeirão, no pólo oposto de Portugal, imita-o como pode. Mas a Estrela não divide: concentra.
(...)
A Estrela, essa, guarda secretamente os ímpetos, reflectindo-se ensimesmada e discreta no espelho das suas lagoas. Somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e esforçada, abre o coração e os tesouros. Então, numa generosidade milionária, mostra tudo. As suas Penhas Douradas, refulgentes já no nome, os seus Cântaros rebeldes a qualquer aplanação, os seus vales por onde deslizaram colossos de gelo, nos brancos tempos do quaternário. Revela, sobretudo, recantos quase secretos de mulher. Fontes duma pureza original, cascatas em que a água é um arco-íris desfeito, e conchas de granito onde se pode beber a imagem. O tempo demorou-se na solidão e no silêncio das suas lombas, e pôde construir à vontade. Abrir ruas, esculpir estátuas, rasgar gargantas, e até deixar desenhado o próprio perfil na curva de raio infinito de cada recôncavo.
Perder-se por ela a cabo num dia de neve ou de sol, quando as fragas são fofas ou há flores entre o cervum, é das coisas inolvidáveis que podem acontecer a alguém. Para lá da certeza dum refúgio amplo e seguro, onde não chega a poeira da pequenez nem o ar corrompido da podridão, o peregrino esbarra a cada momento com a figuração do homem que desejaria ser, simples, livre e feliz. Um homem de pau e manta, a guardar um rebanho,(…)”
Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão. Mas junta-se à perturbante realidade uma certeza ainda mais viva: a de todas as verdades locais emanarem dela. Há rios na Beira? Descem da Estrela. Há queijo na Beira ? Faz-se na Estrela. Há roupa na Beira? Tece-se na Estrela. Há vento na Beira? Sopra-o a Estrela. Há energia eléctrica na Beira? Gera-se na Estrela. Tudo se cria nela, tudo mergulha as raízes no seu largo e materno seio. Ela comanda, bafeja, castiga e redime. Gelada e carrancuda, cresta o que nasce sem a sua bênção; quente e desanuviada, a vida à sua volta abrolha e floresce. O Marão separa dois mundos — o minhoto e o transmontano. O Caldeirão, no pólo oposto de Portugal, imita-o como pode. Mas a Estrela não divide: concentra.
(...)
A Estrela, essa, guarda secretamente os ímpetos, reflectindo-se ensimesmada e discreta no espelho das suas lagoas. Somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e esforçada, abre o coração e os tesouros. Então, numa generosidade milionária, mostra tudo. As suas Penhas Douradas, refulgentes já no nome, os seus Cântaros rebeldes a qualquer aplanação, os seus vales por onde deslizaram colossos de gelo, nos brancos tempos do quaternário. Revela, sobretudo, recantos quase secretos de mulher. Fontes duma pureza original, cascatas em que a água é um arco-íris desfeito, e conchas de granito onde se pode beber a imagem. O tempo demorou-se na solidão e no silêncio das suas lombas, e pôde construir à vontade. Abrir ruas, esculpir estátuas, rasgar gargantas, e até deixar desenhado o próprio perfil na curva de raio infinito de cada recôncavo.
Perder-se por ela a cabo num dia de neve ou de sol, quando as fragas são fofas ou há flores entre o cervum, é das coisas inolvidáveis que podem acontecer a alguém. Para lá da certeza dum refúgio amplo e seguro, onde não chega a poeira da pequenez nem o ar corrompido da podridão, o peregrino esbarra a cada momento com a figuração do homem que desejaria ser, simples, livre e feliz. Um homem de pau e manta, a guardar um rebanho,(…)”
Excerto do livro PORTUGAL, 3º Edição - Coimbra 1967
leia aqui o capitulo completo
2 comentários:
http://sombra-verde.blogspot.com/2008/08/o-mais-importante-aparncia.html
Também porque sou da Serra, em relação ao blogue eu já cumpri a minha parte.
Bom trabalho, aí no topo da Serra da Estrela!
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